B em-aventurados os que têm fome e sede de justiça, pois serão satisfeitos. (Mateus 5.6)
A quarta bem-aventurança descreve um profundo anseio de crescer em retidão pessoal, um anseio que surge da consciência da necessidade espiritual descrita nas bem-aventuranças anteriores. Não se trata de uma vaga aspiração escondida no fundo da mente. Não são as boas intenções que proverbialmente “pavimentam o caminho para o inferno”. É tão forte quanto nossos instintos para satisfazer as necessidades físicas mais básicas. É o desejo de uma pessoa faminta que não consegue pensar em nada além de comida, ou de uma pessoa morrendo de sede cujos pensamentos giram o tempo todo em torno da água.
A promessa de felicidade bem-aventurada é para aqueles que anseiam pela retidão com esse fervor inabalável. É para aqueles que sabem que seus pecados os separaram de Deus e desejam estabelecer ou restaurar um relacionamento com Ele. É para aqueles que querem viver as bem-aventuranças em sua vida diária, que querem mostrar o fruto do Espírito em cada ação, que desejam se tornar mais semelhantes a Cristo à medida que caminham com Ele. Pois essa justiça é mais do que a mera conformidade com a lei; trata-se de ser como Jesus, que é Ele mesmo a nossa justiça.
É, porém, por iniciativa dele que vocês estão em Cristo Jesus, o qual se tornou sabedoria de Deus para nós, isto é, justiça santidade e redenção. (1 Coríntios 1.30)
Alguns disseram que a quarta bem-aventurança poderia começar igualmente bem com: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de Mim”. Isso nos faz lembrar do salmista que estava ofegante e chorando por Deus (Salmo 42.1-3).
Martyn Lloyd-Jones explica como a “justiça” neste versículo inclui tanto a justificação quanto a santificação.1 Envolve o desejo de ser reconciliado com Deus, por meio da morte expiatória de nosso Senhor Jesus Cristo, e o desejo de ser livre do pecado em todas as suas formas, ou seja, o desejo de deixar de ser “escravo do pecado” e se tornar “escravo da justiça” (Romanos 6.17-18). O primeiro desejo é satisfeito assim que tomamos a decisão de confiar em Cristo e segui-lo, e depois disso não temos mais o mesmo relacionamento com o pecado (1 João 3.6). O segundo, entretanto, é um processo que continuará pelo resto de nossa vida terrena.
A gramática Grega incomum de Mateus 5.6 mostra que devemos desejar a retidão total, como um pão inteiro e não apenas uma fatia, uma jarra inteira de água e não apenas um copo. A felicidade plena não vem para aqueles que estão dispostos a se contentar com uma bondade parcial, a lidar com alguns hábitos pecaminosos e não se preocupar com outros, ou a cultivar apenas uma seleção de traços de caráter semelhantes aos de Cristo. O belo fruto do Espírito (Gálatas 5.22-23) é, como mostra a gramática Grega, um único fruto com nove aspectos descritos, e não nove frutos separados.
Sabemos pela primeira bem-aventurança e por muitas outras Escrituras que não podemos fazer nada disso em nossa própria força. A justiça pela qual ansiamos é a justiça que vem de Deus (Romanos 10.3), um dom gratuito Dele para nós. Isso se aplica tanto à nossa justificação pela fé quanto ao nosso crescimento gradual em santidade.
A promessa que acompanha essa bem-aventurança é que aqueles que têm esse desejo receberão exatamente o que estão desejando. Depois de colocarmos nossa confiança em Cristo, o Espírito Santo trabalhará em nós, capacitando-nos a aprender a resistir a Satanás. Seremos transformados com glória cada vez maior à semelhança do Senhor (2 Coríntios 3.18). Esse processo de transformação será concluído no céu. Quando O virmos, seremos como Ele e, enquanto isso, aguardamos esse dia com esperança Cristã confiante e continuamos a lutar por Sua pureza (1 João 3.2-3).
Aqui na Terra, não devemos nos desanimar ao descobrir que ainda somos uma “obra em andamento” imperfeita, vencendo algumas batalhas contra Satanás e perdendo outras. Devemos nos lembrar de que as Escrituras nos prometem perdão e purificação de nossas injustiças, sempre que confessarmos nossos pecados (1 João 1.8-9).
Muitos Cristãos escreveram sobre sua luta diária contra o pecado. O apóstolo Paulo descreveu seu desejo de fazer o bem e sua consternação por tantas vezes descobrir que, em vez disso, havia feito o mal (Romanos 7.15-20). Já foi dito muitas vezes: “A perseverança dos santos é cair e levantar, cair e levantar, cair e levantar, cair e levantar, até o céu”. A mística Inglesa do século XIV, Julian de Norwich, também escreveu sobre esse cair e levantar, um processo que nos ajuda a apreciar o surpreendente e inquebrantável amor de Deus por nós.
Caso haja algum amante de Deus na Terra que seja continuamente impedido de cair, eu não sei, pois isso não me foi revelado. Mas isto foi revelado: que, ao cair e ao levantar, estamos sempre inestimavelmente protegidos em um único amor; pois, à vista de Deus, não caímos e, à nossa própria vista, não permanecemos de pé, e ambas as coisas são verdadeiras, a meu ver, mas a vista de nosso Senhor Deus é a verdade mais elevada.2
Se o desejo de nosso coração é ser como Jesus, esse desejo acabará sendo atendido. Enquanto isso, temos a promessa dessa bem-aventurança de felicidade abençoada como um “subproduto” de nosso desejo. Se buscarmos a felicidade, não a encontraremos, mas se buscarmos a santidade, receberemos a felicidade ao longo do caminho e, no final da estrada, a santidade perfeita também. Nossa vida pode ser cheia de pecados e fracassos, mas se mantivermos nosso anseio fervoroso pela retidão, essa promessa de felicidade será para nós. É o anseio que traz a felicidade.
Nosso anseio é conhecido por Deus e afirmado por Ele, assim como Ele confirmou ao Rei Davi com um “muito bem” pelo desejo de Davi de construir um templo (1 Reis 8.17-18), embora a guerra de Davi o tenha impedido de realizar seu desejo (1 Crônicas 22.7-10).
Como o Dr. Lloyd-Jones, escrevendo em 1959, apontou:
Se você está preocupado com a situação do mundo e com a ameaça de possíveis guerras, então eu asseguro de que a maneira mais direta de evitar tais calamidades é observar palavras como [a quarta bem-aventurança]. Se todos os homens e mulheres deste mundo soubessem o que é ter ‘fome e sede de justiça’, não haveria perigo de guerra. Este é o único caminho para a verdadeira paz.3
Oh, a bem-aventurança daqueles cujo desejo do coração é ser como Jesus
Bem-aventurados os misericordiosos, pois obterão misericórdia (Mateus 5.7).
“Que declaração profunda!”, escreveu o Dr. Lloyd-Jones sobre a primeira metade desta próxima bem-aventurança, “Que teste para cada um de nós, para toda a nossa posição e para a nossa profissão de fé Cristã!”4 Somos misericordiosos? Se não, nossa fé em Jesus fez alguma diferença em nosso caráter?
“Mercy” (misericórdia) parece ser uma palavra curta, simples e cotidiana, que aparece centenas de vezes na maioria das traduções da Bíblia em Inglês. No entanto, seu significado é amplo e profundo. Assim como em Inglês existem outras palavras semelhantes a “mercy” (misericórdia), como “compassion” (compaixão), “forgiveness” (perdão) e “grace” (graça), o mesmo acontece no Hebraico do Antigo Testamento, onde várias palavras diferentes são traduzidas em Inglês como “mercy” (misericórdia). A palavra Hebraica padrão para misericórdia é rachamim, que também significa “útero”, indicando proteção, provisão e o amor inabalável de uma mãe por seu bebê. (Jesus provavelmente usou uma palavra semelhante em Aramaico, quando falou a quinta bem-aventurança). Esse pensamento nos leva a hesed (ou chesed), o amor ativo e inabalável de nosso Deus que mantém a aliança. De fato, hesed às vezes é traduzido como “misericórdia”, por exemplo, “Desejo misericórdia, e não sacrifícios” (Oséias 6.6). A misericórdia é uma parte intrínseca do amor hesed.
O Grego do Novo Testamento também tem várias palavras traduzidas em Inglês como “mercy” (misericórdia), mas a palavra padrão é eleos, usada aqui em Mateus 5.7. A mesma palavra ocorre quando Jesus cita as palavras de Deus em Oséias 6.6 sobre desejar misericórdia, não sacrifício (Mateus 9.13; 12.7). Também ocorre na história dos dois cegos que buscam ser curados e clamam a Jesus: “Tem misericórdia de nós” (Mateus 20.30-31) e quando Jesus repreende aqueles que davam o dízimo de suas especiarias e ervas, mas não tinham praticado “a justiça, a misericórdia e a fidelidade” (Mateus 23.23).
O significado básico da palavra Inglesa “mercy” (misericórdia) é bondade para com alguém sobre quem você tem poder. A misericórdia envolve compaixão ou piedade, mas é mais do que isso, porque a misericórdia inclui ação, além de um sentimento de simpatia. Os cegos estavam pedindo a Jesus que fizesse algo por eles. A misericórdia era algo que os dizimadores de especiarias deveriam estar fazendo, não apenas se sentindo misericordiosos.
A misericórdia inclui o perdão, essa grande característica dos Cristãos que diferencia nossa fé de todas as outras religiões do mundo, nas quais a vingança e a retaliação são normalmente permitidas e, às vezes, até mesmo ordenadas como um dever. Mas não é assim na fé fundada pelo Senhor Jesus, que “Quando insultado, não revidava; quando sofria, não fazia ameaças” (1 Pedro 2.23, BKJ).
Em vez disso, temos “as bem-aventuradas retaliações do reino de Deus”.5 Por exemplo,
Se o seu inimigo tiver fome, dê-lhe de comer; se tiver sede, dê-lhe de beber. (Provérbios 25.21; Romanos 12.20)
Se alguém o ferir na face direita, ofereça-lhe também a outra. E se alguém quiser processá-lo e tirar-lhe a túnica, deixe que leve também a capa. (Mateus 5.39-40)
Há uma bela ilustração na parábola de Jesus sobre o filho pródigo, cujo pai injustiçado “retaliou” correndo para abraçá-lo e beijá-lo e depois ordenando as melhores roupas, joias e um banquete para ele (Lucas 15.11-24).
A misericórdia é um aspecto fundamental do caráter de Deus. Quando o SENHOR mostrou Sua glória a Moisés, as duas características que Ele mencionou foram Sua bondade e Sua misericórdia (Êxodo 33.19). Quando Ele proclamou Seu nome a Moisés, enquanto estavam juntos no monte Sinai, Ele disse: “Senhor, Senhor Deus compassivo e misericordioso...” (Êxodo 34.6). É interessante notar que o lugar estabelecido pelo SENHOR para se encontrar com Moisés tem sido tradicionalmente chamado em Inglês de “mercy seat” (propiciatório)”. Era uma cobertura de ouro puro feita para ser colocada sobre a Arca da Aliança, ou seja, a caixa de madeira que continha as tábuas de pedra dos Dez Mandamentos (Êxodo 25.17-22). O nome literal da cobertura era “propitiatory shelter” (abrigo propiciatório) ou “propitiation place” (lugar de propiciação), traduzido em algumas versões da Bíblia como “atonement cover” (cobertura de expiação). O propiciatório não era apenas o lugar onde Deus aparecia, mas também onde o sumo sacerdote aspergia sangue uma vez por ano, no Dia da Expiação (Levítico 16.1-16), para que seus pecados e os pecados de toda a comunidade pudessem ser perdoados.
O maior exemplo da misericórdia de Deus para conosco é a entrega de Seu Filho. Ele amou o mundo com um amor hesed ativo, um amor que realiza ações misericordiosas. Dar Seu Filho foi Seu ato de misericórdia para nos salvar (João 3.16).
Embora Deus seja cheio de misericórdia, o oposto ocorre com os seres humanos. A misericórdia e o perdão não parecem vir naturalmente para nós. Sem a ajuda do Espírito Santo, tendemos a querer “nos defender” e a buscar vingança ou, pelo menos, a buscar o que poderíamos descrever para nós mesmos como justiça, reparação/compensação ou reivindicação de nossos direitos. É por isso que é tão importante nos confrontarmos com essa bem-aventurança como um teste de realidade da nossa fé Cristã. A misericórdia faz parte da retidão que a quarta bem-aventurança nos diz que deve ser nosso anseio fervoroso. Um espírito naturalmente perdoador é raro, portanto, se descobrirmos que agora temos um espírito perdoador, podemos nos alegrar com essa obra de Deus em nossa vida. Quando somos misericordiosos, e não vingativos, em nossas atividades diárias, quando somos gentis com nossos inimigos em sua aflição, isso é um sinal de que “já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim” (Gálatas 2.20).
Visto que Deus combina graça e misericórdia quando descreve a Si mesmo, vamos considerar onde essas duas qualidades se sobrepõem e onde são diferentes. A palavra Grega do Novo Testamento para graça, charis, significa um favor dado gratuitamente, sem receber nada em troca. Como Cristãos, pensamos imediatamente no perdão de Deus aos nossos pecados (Romanos 3.24), mas os seres humanos também podem mostrar graça uns aos outros (Atos 2.47; 25.3). A graça de Deus é uma resposta ao pecado humano, mas Sua misericórdia é uma resposta à miséria humana ou, de fato, à miséria de qualquer outra parte de Sua criação (Jó 38.41). Richard Chenevix Trench observou que nos propósitos de Deus para a salvação,
a graça deve preceder a misericórdia, a χάρις [charis] deve preceder e abrir caminho para a ἔλεος [eleos]. É verdade que as mesmas pessoas são os sujeitos de ambos, sendo ao mesmo tempo culpados e miseráveis; no entanto, a justiça de Deus, que é tão necessária de ser mantida quanto seu amor, exige que a culpa seja eliminada antes que a miséria possa ser aliviada; somente o perdoado pode ser abençoado. Ele deve perdoar, antes que Ele possa curar; os homens devem ser justificados antes que possam ser santificados.6
Assim como os seres humanos podem ser graciosos uns com os outros, também podemos ser misericordiosos uns com os outros (Lucas 6.36) e perdoar uns aos outros (Colossenses 3.13).
Embora todos os seres humanos, feitos à imagem de Deus, sejam capazes de ser graciosos, misericordiosos e perdoadores, nosso relacionamento com Deus deve fazer com que nós, Cristãos, demonstremos essas qualidades em maior medida. Quanto mais percebermos a profundidade da graça, da misericórdia e do perdão de Deus para conosco, mais fácil será demonstrar graça, misericórdia e perdão àqueles que nos feriram ou ofenderam. Isso vai muito além de reconhecer que alguém pode ter tido uma dor de cabeça no dia em que gritou conosco injustamente, ou que foi influenciado por uma experiência angustiante do passado, ou sofrer de uma doença mental. Reconhecemos que, em última análise, essa pessoa foi enganada pelo mundo, pela carne e pelo diabo, como nós mesmos certamente fomos enganados no passado. Por meio de suas palavras ou ações ofensivas, eles foram vítimas de Satanás e de suas ferramentas involuntárias. Mas eles não entendem a situação em termos espirituais e, nesse sentido, não são responsáveis por suas ações. Portanto, sentimos compaixão por elas, especialmente se as vemos consumidas pela amargura e pela raiva. Nós as perdoamos em nosso coração e, se tivermos oportunidade, praticamos atos práticos de misericórdia por elas, inclusive orando para que Deus as perdoe (Lucas 23.34; Atos 7.60). Pode ser que nossa misericórdia não seja reconhecida como tal por quem a recebe. Eles podem ver nossa ação misericordiosa para com eles como um sinal de fraqueza ou uma admissão de culpa. Se for esse o caso, console-se sabendo que o Senhor sabe e entende.
Apesar da obra do Espírito Santo, não nos tornaremos perfeitos em misericórdia aqui na Terra. Se fôssemos julgados pela nossa misericórdia, nenhum de nós alcançaria o céu. Mas é pela graça que somos salvos; não conquistamos nossa salvação por nossas boas ações (Efésios 2.8-9). Deus demonstrará misericórdia para conosco no Dia do Juízo por causa de nossa atitude de arrependimento e confiança, nossa humilde percepção de que somos espiritualmente destituídos e desamparados (como vimos na primeira bem-aventurança).
Portanto, a promessa no final da quinta bem-aventurança, de que a misericórdia será dada aos misericordiosos, deve ser entendida da mesma forma que a oração para sermos perdoados “como temos perdoado” aos outros (Mateus 6.12). Se formos misericordiosos e perdoadores com os outros, isso é principalmente o resultado de nossa percepção de que Deus é misericordioso e perdoador conosco. Já sabemos que receberemos Sua misericórdia no Dia do Juízo, pois Jesus morreu para tirar nossos pecados e, portanto, somos misericordiosos com os outros.