Um Manual para a Vida Cristã

Introdução ao
Sermão do Monte

 

T odo seminarista da Igreja Siríaca Ortodoxa deve aprender de cor o Sermão do Monte em Aramaico – a língua na qual Jesus o proferiu originalmente. 

Estes três capítulos (Mateus 5 a 7) contêm o cerne indiscutível do novo ensinamento radical do Senhor Jesus Cristo. Eles são as páginas mais distintamente Cristãs da Bíblia, pelo menos em termos de instruções de vida.  

Embora o Sermão do Monte chegue muito perto do início do registro de Mateus sobre a vida adulta de Jesus, o evangelista registra várias experiências pelas quais Jesus passou pouco antes. Primeiramente, Ele foi batizado (Mateus 3.13-17). Ao sair da água, desceu do céu o Espírito de Deus e a voz do Pai dizendo: “Este é meu Filho amado, em quem me agrado”. Estas palavras combinam o significado de duas citações do Antigo Testamento sobre a vinda do Messias. O Salmo 2.7 afirma: “Tu és meu Filho”, que governará as nações. Isaías 42.1 fala do deleite do Senhor em Seu escolhido, o Servo sofredor que trará justiça às nações. Em Seu batismo, portanto, Jesus recebeu a garantia de três certezas: Ele era o amado Filho escolhido de Deus, diante d’Ele estava o caminho do sofrimento, mas seu destino final era ser o Rei vitorioso.

O batismo foi um momento chave na vida do Senhor Jesus e também é chave na vida de seus seguidores, embora por um motivo diferente. A Igreja primitiva via o batismo como admissão na comunidade Cristã. Hoje isso é visto particularmente para aqueles que vêm de uma origem de outra religião ou de nenhuma religião e escolhem seguir a Cristo; é frequentemente após o batismo que começa sua perseguição. O batismo é uma clara linha divisória entre o mundo que deixamos para trás e a jornada que estamos empreendendo agora. O batismo pode ser visto como o momento em que nos alistamos no exército do Senhor para enfrentarmos a luta espiritual da fé. 

O Apóstolo Paulo diz que no batismo somos sepultados com Cristo e depois ressuscitados para viver uma nova vida (Romanos 6.3-4). Em algumas tradições primitivas, o candidato ao batismo deveria descer três degraus na piscina, no primeiro passo declarando sua rejeição ao mundo, no seguinte sua rejeição à carne e no terceiro, sua rejeição ao diabo, e afirmaria sua nova fé e compromisso com o Deus trino ao ascender.

Segundo os estudiosos, a renúncia ao mundo, à carne e ao diabo foi usada por quase todos os ramos da Igreja em suas liturgias batismais a partir do segundo século, havendo ou não três degraus para descer, mas depois da Reforma algumas igrejas começaram abandonar esta prática. 

IEm lguns contextos, tais como a sociedade pagã na qual a Igreja nasceu e certos contextos religiosos atuais, a necessidade de renunciar a Satanás e todas as suas obras é óbvia, por exemplo, se existem ídolos ou rituais demoníacos. O batismo era “o ato público no qual a Igreja declarava ao mundo (e a Satanás) que o novo Cristão não pertencia mais ao reino do mal”1, que ele havia sido resgatado do domínio das trevas e transportado para o Reino do Filho amado de Deus (Colossenses 1.13). 

De acordo com Alexander Schmemann, o batismo também é um tipo de exorcismo:

No rito batismal, que é um ato de libertação e vitória, os exorcismos vêm em primeiro lugar porque em nosso caminho para a fonte batismal nós inevitavelmente “atingimos “ a figura escura e poderosa que obstrui este caminho. Ela deve ser removida, afastada, se quisermos prosseguir... o Diabo está ali defendendo aquilo que ele roubou de Deus e reivindica como sua posse... uma luta mortal está prestes a começar cuja questão última não são explicações e teorias, mas a vida eterna ou a morte eterna. Pois quer queiramos ou não, saibamos ou não, estamos todos envolvidos em uma guerra espiritual que vem se desenrolando desde o início. Uma vitória decisiva, com certeza, foi conquistada por Deus, mas o Diabo ainda não se rendeu. Pelo contrário, segundo as Escrituras, é quando mortalmente ferido e condenado que ele encena a última e mais poderosa batalha. Ele não pode fazer nada contra Cristo, mas ele pode fazer muito contra nós. Os exorcismos, portanto, são o início da luta que constitui a primeira e essencial dimensão da vida Cristã2

O batismo é uma clara linha divisória entre nossa velha vida e nossa nova vida em Cristo.

I mmediatamente após Seu batismo, Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto para ser tentado (literalmente “provado”) pelo diabo (Marcos 1.12). Da mesma forma, os Israelitas, tendo sido maravilhosamente libertados de seus inimigos na milagrosa travessia do Mar Vermelho (Êxodo 15.19-21), foram imediatamente conduzidos por Moisés ao deserto com todas as suas dificuldades (Êxodo 15.22). O batismo, essa declaração fundamental da fé em Cristo, de ter abandonado uma velha vida e começado uma nova vida com Ele, é muitas vezes seguida por um período de provações. Muitos Cristãos têm constatado que, logo após seu batismo, as dificuldades os assaltam. Pode ser doença, depressão ou vários problemas práticos. Podem ser ondas de desejo de voltar aos velhos padrões pecaminosos de vida que foram descartados. Pode ser zombaria, crítica, rejeição, até mesmo violência, de pessoas queridas que desaprovam seu passo de fé. Todas estas provações são enviadas pelo diabo que, enfurecido com o batismo, está tentando o crente a abandonar Cristo e o estilo de vida Cristão.

INo caso do próprio Jesus, somos informados de três áreas de tentação durante Seu jejum solitário de 40 dias em uma área do deserto da Judéia que o Antigo Testamento chama de Jesimom, significando A Devastação (Mateus 4.1-11). A palavra Grega πειρασθῆναι (peirasthēnai) é muitas vezes traduzida como “ser tentado” com a nuance de ser seduzido, mas na verdade tem um significado mais positivo na linha de ser testado ou provado ou experimentado. O diabo pode pretender nos fazer pecar, mas, quando Deus permite que o diabo nos teste, é para que possamos vencer o pecado (1 Coríntios 10.13). A tentação não é para nos enfraquecer, mas para nos fortalecer, para que possamos emergir da provação purificados. Jó, no meio de seus terríveis sofrimentos, declarou: “se me puser à prova, aparecerei como ouro” (Jó 23.10). Alguns têm dito que a tentação é o teste que vem a uma pessoa a quem Deus deseja usar.
Cada um de nós enfrentará suas próprias tentações, talvez diferentes daquelas enfrentadas por outros Cristãos que conhecemos, e talvez diferentes em momentos distintos de nossa vida. Nosso Inimigo é astuto e continua manobrando e adaptando seu modo de ataque. Não devemos esperar alcançar uma etapa de nossa vida Cristã terrena quando a tentação cessar; isso virá apenas com nosso descanso celestial.
Jesimom era um deserto poeirento e estéril, perto do Mar Morto, onde pouco ou nada podia crescer. Quando o diabo tentou Jesus lá, as provas foram aquelas apropriadas para uma Pessoa com poderes sobrenaturais, mas os princípios básicos são típicos de muitas tentações que geralmente enfrentamos: prazer; prestígio, orgulho e poder; e possessões. Jesus foi tentado a transformar pedras em pão para satisfazer suas necessidades físicas. Ele foi tentado a fazer uma demonstração espetacular de Sua condição especial para surpreender o mundo. Ele foi tentado a aceitar como presente todos os reinos do mundo em troca da adoração ao diabo. Em resposta a cada um deles, Jesus repreendeu o diabo com versículos da Escritura. 

Todos nós enfrentamos tentações de diversas formas. Satanás nunca vai parar de nos atacar, mas sabemos que Deus nos dá forças para vencer essas tentações.  

D epois de sair de sua provação no deserto, Jesus começou seu ministério. Grandes multidões percorreram longas distâncias para O seguir, mas Jesus subiu em um monte, deixando as multidões para trás. Lá, na encosta do monte, Ele se sentou e seus discípulos foram até Ele. Então, diz Mateus, Ele abriu Sua boca e os ensinou (Mateus 5.1-2). Algumas traduções da Bíblia removem as palavras aparentemente redundantes aqui (como alguém poderia ensinar sem abrir a boca?) e simplesmente afirmam que Jesus começou a ensinar a eles. Mas estas traduções perdem uma importante camada de significado. A frase “abrir a boca” foi usada em Grego para sinalizar ao leitor que algo extraordinariamente importante estava por vir. Era uma frase que prefaciava tanto uma declaração solene e pesada quanto um derramamento do coração a um nível muito íntimo. Devemos acrescentar a isto a informação dada no versículo anterior de que Jesus estava sentado quando Ele falou. Quando um rabino Judeu estava ensinando oficialmente, ele se sentava. Ele poderia dar ensino não oficial quando estivesse de pé ou andando, mas ele se sentaria para ministrar seu ensinamento principal e central.

Portanto, sabemos que o que Jesus está prestes a dizer é de suma importância. Mas para quem Ele está abrindo Seu coração e dando este ensinamento tão significativo? Aos Seus discípulos (Mateus 5.1). No mundo antigo, um discípulo (do Grego μαθητής, mathētḗs) era um aluno dedicado que não apenas tentava absorver os ensinamentos de seu mestre, mas também queria interagir com ele e tentar imitar seu modo de vida, com a esperança de eventualmente se tornar como ele. O compromisso pessoal, profundo e permanente com seu mestre era a principal característica de um discípulo. 

Certamente foi assim que o pequeno grupo que se reuniu em torno de Jesus naquele monte em particular se diferenciou das vastas multidões que O tinham seguido por toda a Galileia. “Seguir” é uma palavra nobre da Bíblia (ἀκολουθέω, akoloutheó em Grego). O significado literal do verbo Grego é estar na mesma estrada ou no mesmo caminho que outra pessoa. Curiosamente, o Livro de Atos revela que os primeiros Cristãos descreveram sua fé como “o Caminho” (Atos 9.2; 19.9,23; 24.14,22) ou o “Caminho do Senhor” ou o “Caminho de Deus” (Atos 18:25-26).

Seguir não foi apenas o que as grandes multidões fizeram (Mateus 4.25), mas também o que Pedro, André, Tiago e João fizeram quando Jesus os chamou de suas redes e barcos de pesca (Mateus 4.20,22). Foi o que Jesus mais tarde ordenou a todos os seus discípulos que fizessem, em um contexto mostrando que Ele queria que eles seguissem Seu exemplo na vida e se necessário morressem (Mateus 16.24). Sentado na encosta do monte, Jesus falou aos mais firmes e devotos de Seus seguidores, que os escritores do Evangelho, usando a linguagem de seus dias, chamaram Seus discípulos. 

risto nos chama para sermos Seus discípulos, aprendendo de Suas palavras e de Seu modo de vida, fiéis a Ele em todas as coisas.

O sermão do Monte é, portanto, dirigido a todos os seguidores comprometidos de Cristo hoje, pois nós - se entregamos nossas vidas a Ele - também somos Seus discípulos. De fato, fazer mais discípulos é o que Jesus ordenou aos Onze (Mateus 28.16-20). 

Nesses três capítulos Jesus nos diz como viver no mundo como Seus discípulos - o que deve acontecer em nossos corações, mentes e vontades e como devemos nos comportar. Ele nos ensina como seguir a Ele pelo caminho certo, o caminho de Deus, o caminho estreito que conduz à vida (Mateus 7.14) mesmo quando Satanás tenta nos desviar para caminhos errados. Ele nos mostra como evitar que nossos desejos naturais nos façam cair em tentações, como resistir às ofertas do diabo de obter prazer, prestígio, poder e posses por métodos errados ou para propósitos errados e muitas vezes orgulhosos ou o que quer que o diabo pendure diante de cada um de nós.  

O Sermão do Monte é uma instrução para um discipulado radical, não definido pela Igreja ou pela cultura ou pela história ou pela tradição, mas pela própria natureza de Cristo. O próprio Senhor deve ser nosso modelo. A decisão de ser Seu discípulo afetará todos os aspectos de nossas vidas. 

O Sermão do Monte é o ensinamento de Cristo especificamente para aqueles que deixaram o reino das trevas e entraram em Seu Reino; ou seja, Seus discípulos, o que significa todos os Cristãos. 

O Dr. Martyn Lloyd-Jones descreveu o Sermão do Monte como “nada mais que uma excelente, grandiosa e perfeita elaboração do que nosso Senhor chamou de seu ‘novo mandamento’. Seu novo mandamento foi que nos amássemos uns aos outros como Ele nos amou... aqui nos é mostrado como fazer.”3

O Sermão do Monte nos ensina como os Cristãos devem viver: as Bem-aventuranças (Mateus 5.3-12) nos mostram quais devem ser nossas atitudes interiores, moldando nossas mentes, emoções e desejos, enquanto o restante dos três capítulos nos mostram quais devem ser nossas ações. 

Mas, podemos perguntar, como é possível obedecer a este ensinamento? Os padrões do Sermão do Monte parecem inatingivelmente altos. Sim, é verdade que não conseguimos por nossas próprias forças, mas o Espírito Santo, em ação nos discípulos de Cristo, nos ajudará. 

Devemos observar também que o Sermão do Monte é principalmente uma descrição de caráter. Não se trata de uma nova versão dos Dez Mandamentos ou de um código ético a ser seguido mecanicamente. É uma série de ilustrações de Cristãos se comportando de uma forma verdadeiramente Cristã.

Ao mesmo tempo, devemos observar que ainda estamos destinados a viver segundo a Lei de Deus e guardar Seus mandamentos, assim como Jesus fez. No Sermão do Monte Jesus enfatizou que Ele não veio para abolir a Lei e os Profetas, mas os complementar, e que nossa justiça deve exceder a dos Fariseus que foram o “movimento de santidade” dos dias de Jesus (Mateus 5.17-20). É verdade que nossa salvação nos foi concedida pela graça de Deus (Seu dom gratuito e imerecido por nós) e não por nada que tenhamos feito, como diz Efésios 2.8-9. É Sua graça, continuando a trabalhar dentro de nós, que nos permite sermos fiéis a Suas leis e mandamentos.  Não estamos sob a lei, no sentido de que ela nos condena.  Mas ainda estamos destinados a vivê-la, até mesmo a ir além dela. No Sermão do Monte, Jesus nos diz como. Começaremos a olhar mais detalhadamente para isto no próximo artigo. 


 

Dr Patrick Sookhdeo

Diretor Internacional , Ajuda Barnabas

 

1 Steve Wilkins, “Baptism as Exorcism”, Theopolis Institute, 24 March 2015,  https://theopolisinstitute.com/baptism-as-exorcism/ (viewed 13 January 2023).

2 Alexander Schmemann, Of Water and the Spirit: A liturgical study of baptism, Crestwood, NY, St Vladimir’s Seminary Press, 1974, pp.23-2 4.

3 D. Martyn Lloyd-Jones, Estudos no Sermão do Monte (Publicado no Brasil pela Editora Fiel) Vol.1, London, Inter-Varsity Fellowship, 1959, pp.15-16. He is referring to John 13:3 4.